Lateral do Sudão disputa Copa Africana sem nunca ter pisado no país que defende

Sheddy Barglan atua na 2ª divisão holandesa
Sheddy Barglan atua na 2ª divisão holandesaPro Shots Photo Agency / ddp USA / Profimedia

Sheddy Barglan, aos 23 anos, disputa sua primeira Copa Africana de Nações pelo Sudão, um país onde ele nunca esteve. O meio-campista do Den Bosch, da segunda divisão holandesa, nasceu e cresceu na Holanda e joga por uma seleção sudanesa exilada, obrigada a mandar seus jogos "em casa" longe do próprio país devido à guerra civil que já dura dois anos e meio.

No Marrocos, os sudaneses vão além do futebol, com o objetivo de devolver o sorriso a um país devastado por uma das piores crises humanitárias da história (12 milhões de deslocados, 25 milhões de vítimas da fome, mais de 150 mil mortos). O time estreia nesta quarta-feira (24), contra a Argélia.

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Confira abaixo a entrevista exclusiva que o jogador concedeu ao Flashscore:

Você chegou ao Marrocos há três dias. Quais são suas primeiras impressões sobre a organização e o ambiente?

Por enquanto, está tudo indo bem. O campo de treinamento é de boa qualidade e o hotel é muito bem organizado. Por outro lado, o clima não está ideal, está chovendo e faz bastante frio. Pessoalmente, estou acostumado com esse clima por causa da Holanda, mas para meus companheiros é mais difícil, eles sofrem com o frio.

Números de Sheddy Barglan
Números de Sheddy BarglanFlashscore

É sua primeira Copa Africana de Nações com o Sudão. Como está vivendo esse momento?

É um momento enorme para mim. As Eliminatórias aconteceram há um ano e eu estava esperando muito por isso. Os últimos meses foram estressantes porque fiquei quatro meses machucado. Só fiquei 100% fisicamente há cerca de seis semanas. Tive medo de perder o torneio, mas felizmente consegui me recuperar a tempo.

Você participou da campanha de classificação, especialmente naquela vitória marcante contra Gana. Quais lembranças você guarda desse jogo?

Foi incrível e histórico para nós. Estávamos em um grupo muito difícil e todos achavam que Gana passaria e o Sudão seria eliminado. Mas conseguimos e todos ficaram extremamente felizes. Mesmo que eu não tenha jogado nessas partidas, estive presente em todas as convocações. O treinador também ficou muito feliz por vencer Gana, porque, mesmo sendo ganês, hoje está com o Sudão e ficou orgulhoso de ter vencido seu país.

O que significa para você, pessoalmente, vestir a camisa do Sudão?

É a realização de um sonho de criança. Desde os sete anos, eu dizia aos meus amigos que, se um dia tivesse a chance de jogar pelo Sudão, não hesitaria nem por um segundo. Disputar a CAN é o auge para qualquer jogador africano. Meus pais ficaram realmente felizes por eu representar o Sudão, especialmente meu pai. Meu pai é totalmente sudanês e minha mãe é metade sudanesa. Eles ficaram muito orgulhosos.

O Sudão está passando por um momento muito difícil. Você sente que essa competição vai além do futebol?

Com certeza. A guerra já dura dois anos e meio. Para o povo, o futebol é uma das poucas fontes de alegria que restam. Sabemos que podemos levar um pouco de felicidade para eles, e isso nos motiva a dar o nosso melhor. Sentimos uma grande responsabilidade, é nosso papel fazê-los felizes. Jogando ou não, treinamos e nos preparamos juntos. Esses 90 minutos são muito importantes para nós e para o Sudão.

Você sente isso mesmo sem ter nascido lá?

Sinto sim, é um pouco diferente, mas sinto porque meus pais são de lá. Tento ver as coisas pelo ponto de vista deles. Grande parte da minha família morava lá. Eles já saíram do país, mas claro que penso neles. É muito triste ver o que está acontecendo. Converso com meu pai, sempre pergunto como está a situação. Não tem muita cobertura na imprensa europeia. No começo, meu pai estava muito preocupado, mas desde que minha família saiu do país, ele está mais tranquilo.

Você acha que jogar essa CAN pelo Sudão pode ajudar de alguma forma a trazer paz ao país?

Acho que, quando nos classificamos, houve um pequeno momento de paz. Espero que, se fizermos uma boa campanha, a guerra acabe. Mas, obviamente, não depende só de nós. É mais complicado do que isso.

Como vocês não jogam em casa há três anos, sente que o povo realmente está com vocês?

Vejo isso nas redes sociais, eles realmente nos apoiam. Nunca estive no Sudão, então para mim é um sentimento um pouco diferente, mas posso imaginar que para os outros companheiros que moram lá isso é muito importante.

Você nunca esteve no Sudão, nem antes da guerra. Como é essa relação com os torcedores?

É um sentimento especial, de fato. Meus companheiros que viveram lá me contam como o país é lindo e como o povo ama futebol. Hoje, por causa da insegurança, é impossível ir, talvez só para Port-Sudan, na fronteira. Sempre quis conhecer o Sudão quando era criança, mas minha mãe não tinha passaporte na época e não queria que eu fosse sozinho com meu pai. Ela sempre achou que não era seguro ir para lá.

A situação do país é um tema frequente no vestiário?

Surpreendentemente, nem tanto. Claro, os jogadores ligam para suas famílias, mas não falamos muito sobre isso em grupo. É um assunto doloroso, quase um tabu por respeito. Só perguntei há alguns dias para um amigo que veio de uma região onde a guerra começou, mas ninguém fala muito sobre isso. Se eu estivesse no lugar deles, acho que faria o mesmo. Mas é uma motivação enorme. Lutamos por nossas famílias e por esse povo que nos apoia em todo lugar. Em todos os países onde estive, há muitos sudaneses. Pelo mundo todo, seja na Líbia, no Catar ou na Arábia Saudita, eles são muitos.

Ter que jogar longe do país te afeta?

Para ser sincero, me sinto mais em paz aqui porque estou um pouco distante de lá. Normalmente não ficamos muito tempo, no máximo duas semanas. O único problema é que as viagens são longas, já que venho da Holanda e preciso ir até a África ou Ásia. Costumamos jogar na Líbia ou fazer preparações na Arábia Saudita. 

Como é a integração em um time com jogadores de origens tão diferentes (Austrália, Tailândia, Europa)?

A barreira do idioma é meu maior desafio. Falo árabe libanês, enquanto eles falam o dialeto sudanês. Por isso, me comunico principalmente em inglês com alguns, e o companheiro que veio da Austrália me ajuda muito com as traduções. O fato do treinador ser ganês e falar inglês também me ajuda bastante. Apesar disso, formamos uma grande família, onde os mais velhos ajudam os mais jovens.

Você sente diferença em relação aos outros jogadores da seleção, que em sua maioria nasceram e cresceram no Sudão?

Consigo comparar a vida deles com a dos meus pais, que também tiveram que deixar o país por causa da guerra. Tenho sorte de ter nascido na Holanda.

O fato de os dois maiores clubes do Sudão jogarem agora em Ruanda afeta a seleção?

Não, acho que é uma boa oportunidade para eles poderem jogar em uma liga. É sempre melhor do que não jogar. Eles estão felizes por poder competir, mesmo que infelizmente não seja no Sudão.

Esportivamente, vocês estão em um grupo muito complicado, com Burkina Faso, Argélia e Guiné Equatorial...

Sim, é um grupo difícil, mas temos nossa chance. No futebol, tudo pode acontecer.

Sheddy Barglan espera que campanha do Sudão possa diminuir os ânimos no Sudão
Sheddy Barglan espera que campanha do Sudão possa diminuir os ânimos no SudãoProfimedia

Seu treinador declarou que quer ganhar a CAN. Você compartilha dessa ambição?

Seria incrível. A última vitória do Sudão foi em 1970. Vamos para a competição jogo a jogo, sem pensar muito à frente. Sabemos que somos os azarões, mas isso nos motiva. Nossa força está na capacidade de defender bem juntos e ser muito perigosos nos contra-ataques.

Uma última mensagem para os torcedores sudaneses antes do início do torneio?

Quero dizer que estou muito feliz pelo apoio deles, apesar de todas as dificuldades que enfrentam. Vamos fazer de tudo para deixá-los orgulhosos e permitir que esqueçam um pouco a guerra durante 90 minutos.