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O que diz a ciência sobre a grama artificial? Entenda estudo citado pelo Palmeiras

Gramado do Allianz Parque machuca mais do que os demais?
Gramado do Allianz Parque machuca mais do que os demais?Ettore Chiereguini / AGIF / AGIF via AFP
Após astros do futebol brasileiro se juntarem para pedir o fim do gramado sintético, nesta terça (18), o Palmeiras se manifestou imediatamente defendendo seu campo artificial. O que diz a ciência sobre o tema?

Embora a união de futebolistas brasileiros seja uma novidade, sindicatos de atletas de outras partes do mundo e de outros esportes pedem o fim do sintético há anos.

Saiba mais sobre a manifestação dos atletas

Entenda abaixo o que diz o estudo citado pelo Palmeiras e veja um resumo do porquê o tema ainda é polêmico. 

O gramado do estádio palmeirense causa controvérsia
O gramado do estádio palmeirense causa controvérsiaCesar Greco/Palmeiras

Números são conflitantes

Há mais de 1,4 mil artigos na literatura científica investigando o efeito da grama artificial na saúde e no físico dos atletas.

A maioria destas pesquisas tem foco nos esportes americanos, e não há um consenso entre eles basicamente por três razões:

1) Diferentes estudos analisam diferentes tipos ou geração de grama

2) Via de regra, os estudos consideram diferentes tipos de contusão (lesões sem contato entre atletas, lesões nos membros inferiores, lesões após impacto com a superfície, etc.).

3) O número e as incidências das lesões também variam de pesquisa para pesquisa

Quando discrepâncias assim acontecem, os pesquisadores se voltam para a metanálise destes estudos para entender qual a melhor conclusão atual sobre o tema (a metanálise é basicamente o compilado de todos os estudos).

O que diz a metanálise

A metanálise mais recente disponível no Google Scholar é de julho de 2023 – e é justamente o "recente estudo” citado pelo Palmeiras em sua defesa do campo do Allianz Parque.

Ela foi conduzida por pesquisadores de diversas universidades da Finlândia em cima de 22 dos mais completos estudos que tratam da "Incidência de lesões de futebol sofridas em gramado artificial em comparação com grama e outras superfícies de jogo".

E a conclusão dos cinco cientistas no artigo publicado na prestigiosa The Lancet é a seguinte:

• Homens (11 estudos) e mulheres (5 estudos) tiveram menor incidência de lesões na grama artificial

• Atletas profissionais tiveram incidência menor de lesões (8 estudos) na grama artificial

• Não houve evidência de diferenças na incidência de lesões em jogadores amadores (8 estudos)

• A incidência de lesões na pélvis/coxa (10 estudos) e no joelho (14 estudos) foi menor na grama artificial

O Botafogo também usa sintético em seu estádio
O Botafogo também usa sintético em seu estádioBFR

"A incidência geral de lesões no futebol é menor na grama artificial do que na grama natural. Com base nesses resultados, o risco de lesões não pode ser usado como argumento contra a grama artificial quando se considera a superfície de jogo ideal para o futebol", concluíram os pesquisadores finlandeses.

"Revisões sistemáticas e metanálises anteriores incluíram todos os esportes praticados em gramado artificial e constataram maior incidência de lesões quando o futebol americano foi incluído", acrescentou a análise.

Fábrica de grama artificial no Vietnã, uma das autorizadas pela FIFA
Fábrica de grama artificial no Vietnã, uma das autorizadas pela FIFACCGrass

Por que na Europa há pouco sintético?

A Comissão Europeia quer acabar com o gramado sintético em todas as instalações esportivas, com um prazo de oito anos. No entanto, o objetivo é reduzir a emissão de microplásticos no meio ambiente, não diminuir as contusões. 

A Holanda anunciou ano passado a proibição da grama artificial em suas ligas. Houve "muitas reclamações" de jogadores sobre a grama artificial "entre outras coisas, porque (para eles) a bola quica de forma diferente e ocorrem muitas lesões", explicou a Federação Holandesa (KNVB) ao Flashscore.

Johan Cruyff Arena, na Holanda, tem campo híbrido
Johan Cruyff Arena, na Holanda, tem campo híbridoProfimedia

"Alguns jogadores sentem dores musculares por um período mais longo depois de jogar em um campo de grama artificial, mas isso ainda não foi comprovado", acrescentou a KNVB.

Embora seja impopular, a grama artificial é permitida pela UEFA desde que "atenda aos requisitos do Programa de Qualidade da FIFA", afirmou a assessoria a entidade. A FIFA não permite o sintético em seus principais torneios, mas também não entende que ele faça mal aos jogadores.

Uma outra razão pela não utilização massiva do sintético no continente é que os estádios não são cedidos com frequência para shows, como o Allianz Parque ou o Engenhão, por exemplo.

Fabricação de grama sintética na CCGrass, no Vietnã
Fabricação de grama sintética na CCGrass, no VietnãCCGrass

Quase 100% dos atletas da NFL são contra o sintético

A liga de futebol americano tem um índice de contusão por partida muito mais alto que o futebol, não importa o tipo do campo.

Mas por lá, há muitos estudos que alegam que, sim, há mais lesões no artificial, e o movimento anti-sintético tem a adesão de 92% dos jogadores da NFL, segundo o sindicato dos atletas (NFLPA).

Um problema é que grande número destas pesquisas são financiadas por empresas de sintético ou associações de grama natural, como o tweet a seguir:

Campanha da Safer Fields For All, empresa de gramados naturais dos EUA
Campanha da Safer Fields For All, empresa de gramados naturais dos EUATwittter/Reprodução

Os números mais recentes da própria NFL jogaram, porém, um pouco de água fria neste movimento dos atletas.

Os dados recém-divulgados pela liga mostram que o número de lesões na última temporada foi "praticamente o mesmo" nos dois tipos de gramado, após anos de uma pequena discrepância favorável à grama natural.

"Não houve diferença significativa entre a grama sintética e a natural na taxa de lesões de membros inferiores não-causada por contato entre jogadores", disse a NFL em seu relatório publicado logo após o Super Bowl do ano passado.

Taxas de incidência de lesões no sintético em comparação com outras superfícies por jogos e sessões de treinamento
Taxas de incidência de lesões no sintético em comparação com outras superfícies por jogos e sessões de treinamentoKuitunen, Immonen, Pakarinen, Mattila e Ponkilainen

As taxas de incidência deste tipo de lesão por 100 jogadas foram de 0,043 na grama sintética e 0,042 na grama natural — ou seja, praticamente idênticas.

Em 2022, a taxa de contusão foi maior no sintético (0,048 a cada 100 jogadas) do que na grama natural (0,035).

"Os dados não conseguem, no entanto, explicar o que os jogadores têm compartilhado com a NFL há anos: que nos sentimos muito pior depois de jogar em superfícies sintéticas e que preferimos campos de grama consistentes e de alta qualidade", afirmou o sindicato.

A NFLPA explica que "a grama natural acaba cedendo" aos movimentos bruscos, enquanto que em superfícies sintéticas "há menos elasticidade, o que significa que nossos pés, tornozelos e joelhos absorvem a força, o que aumenta a probabilidade de lesões".

Há 15 equipes da NFL que atualmente usam grama sintética em seus estádios. Dois times (Green Bay Packers e Philadelphia Eagles) usam gramado híbrido.

Um detalhe: tanto o pior quanto o melhor gramado da liga possuem grama natural.

Taxa de lesões por estádio
Taxa de lesões por estádioSIS

O Allegiant Stadium, palco do Super Bowl LVIII, foi classificado por um estudo independente da Sports Info Solutions como o campo com mais contusões da liga (média de 6,5 lesões por jogo).

Já o gramado com menos lesões (4,75 por jogo) é o Bank of America Stadium, do Carolina Panthers, que também tem campo natural. Com exceção do melhor e do pior, todos os outros estádios tiveram entre cinco e seis lesões por partida.

Conclusão: as lesões parecem depender da qualidade do campo – seja ele natural ou artificial.

Os jogadores conseguiram melhorias nos gramados da NFL
Os jogadores conseguiram melhorias nos gramados da NFLProfimedia

Independentemente do que dizem os números, a reclamação dos atletas trouxe mais pesquisas sobre o tema e o desenvolvimento de melhores gramados.

E mais: o sintético pode ser um problema que vai além das lesões. Na década de 1980, seis jogadores de beisebol morreram de câncer nos Estados Unidos possivelmente decorrente de agentes químicos presentes no gramado do Philadelphia Phillies.

A questão é complexa. Há a opinião relevante de quem atua no campo de jogo; há o problema ambiental; há a questão da padronização que evita acidentes e melhora a qualidade do espetáculo; há a questão financeira (de clubes pequenos que não podem arcar com a boa manutenção da grama natural aos clubes grandes que ganham mais receita com o artificial); e há o fato de que não existe um estudo definitivo sobre o impacto do sintético no corpo dos futebolistas.