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Preparador de goleiros justifica recusa ao Flamengo para seguir no Del Valle

Ricardo abriu mão da educação infantil para ter segunda chance no futebol
Ricardo abriu mão da educação infantil para ter segunda chance no futebolValladolid
O fato de não ter sido um goleiro profissional de futebol não impediu que Ricardo Pereira, 50 anos, se tornasse membro efetivo de uma comissão técnica de alto nível. O conhecimento que teve por mais de duas décadas debaixo das traves foi a base que lhe fomentou o desejo ter o futebol como ganha pão.

A experiência anterior, válida, não era suficiente para chegar nos lugares que almejava. Ricardo, hoje no Al-Ain, dos Emirados Árabes Unidos, fez questão de se preparar para alcançar o alto nível exigido do futebol internacional.

Os vários contatos mostraram-se valiosos para indicações e abertura de portas, que o fizeram conquistar, degrau por degrau, espaço em times como Benfica, Independiente del Valle, Legia Varsovia, da Polônia, Nottingham Forest, Valladolid, entre outros. 

Nesta conversa exclusiva com o Flashscore, o português fala sobre a paixão que nutre pela posição e pelo desejo permanente de aprimorar as técnicas e habilidades dos arqueiros que passam pelas suas mãos. 

Ricardo também revela uma proposta do Flamengo e abre o jogo sobre as diversas experiências que teve ao redor do mundo, com a mais enriquecedora delas sendo no Del Valle, do Equador. 

Ricardo vivenciou de perto o sucesso do Del Valle
Ricardo vivenciou de perto o sucesso do Del ValleDel Valle

Conte-nos um pouco de sua trajetória...

Ser goleiro sempre foi uma paixão, desde a infância. Joguei por mais de 25 anos, não virei profissional, mas nunca deixei de jogar. Quando minha carreira amadora estava perto do fim, larguei minha ocupação na educação infantil para ganhar uma segunda oportunidade do futebol. Consigo vestir a pele do goleiro e esta empatia vejo como fundamental. Fiz cursos na Escócia, Suíça e Portugal e tive ajudas de profissionais que me abriram portas. 

Onde foi sua primeira experiência?

Foi num clube português chamado Real Massamá. De lá, fui pro Benfica, onde fiquei por cinco anos, uma grande escola. Foi lá que tive contato com jovens jogadores do Gabão, que utilizaram as instalações do Benfica por um ano. Acumulei a função de preparador do sub-17 com esta presença com os africanos.

Ricardo teve chance de treinar jovens goleiros da seleção do Gabão
Ricardo teve chance de treinar jovens goleiros da seleção do GabãoArquivo pessoal

Quais os aprendizados com os gaboneses?

Pude confirmar que o jogador africano é geneticamente dotado ao nível da potência e da velocidade. Também contam com um repertório motor e de agilidade que fazem parecer que jogar é como uma dança sincronizada. Foi uma experiência maravilhosa passar aos goleiros meia dúzia de conceitos táticos que foram bem aproveitados. 

Qual a importância do preparador de goleiros em uma comissão técnica?

Ele precisa estar alinhado com a proposta do treinador de trabalhar com linhas baixas ou altas, marcar sob pressão, etc. O técnico que não vê a importância de trabalhar em conjunto com um preparador de goleiros está se prejudicando. 

Um preparador de goleiros precisa identificar onde seus goleiros têm que melhorar. Há goleiros mais visuais que precisam muito do vídeo. Outros precisam de mais prática no campo. 

É preciso se adaptar a cada projeto. Fui um preparador de goleiros diferente no Legia do que no Independiente porque o jogo coletivo da equipe era diferente.

Ricardo participou do acesso do Valladolid para LaLiga
Ricardo participou do acesso do Valladolid para LaLigaValladolid

O que dizer da importância dos goleiros de hoje para jogar com os pés?

As estatísticas mostram que, em muitos jogos, os goleiros trabalham mais com os pés do que com as mãos. O goleiro precisa ter esta capacidade para tirar o time de um momento de aperto. Muitos times jogam a partir do goleiro.

Assim era no Del Valle, onde tive um grande aprendizado sobre um time ter posse, incluindo o goleiro no seu esquema de jogo. Ali foi uma outra grande escola, achei que ia lá para ensinar e mais aprendi do que qualquer outra coisa. Essa atenção ao jogo dos goleiros com os pés ainda pode ser melhor trabalhada na base brasileira. 

Ricardo sempre se considerou um
Ricardo sempre se considerou um Valladolid

Quais os segredos do bom trabalho no Del Valle?

Estive lá por três anos, fomos campeões da Sul-Americana de 2022 e da Recopa de 2023, entre outros títulos. Eles possuem uma equipe de scouting fantástica. Fazem uma boa captação de jovens valores locais e lhes oferecem toda a estrutura para se desenvolverem. Os técnicos também são muito capacitados, a filosofia é a mesma entre profissional e base, isso ajuda na transição. 

Além disso, são muito criteriosos na escolha dos treinadores. Não agem por impulso, fazem entrevistas e estudos até tomarem a melhor decisão. É um lindo projeto, bem pensado e com muito talento envolvido. 

Você recebeu convite para trabalhar no Flamengo. Como foi isso?

Foi quando o Sampaoli lá estava, foi um convite sério e objetivo. Fiquei orgulhoso, mas não podia deixar o Del Valle naquele momento. Iria abandonar um time que tanto me deu em período próximo de algumas decisões de liga e Libertadores. Não era o momento e o clube precisava liberar, havia um valor de cláusula a ser pago. Recusei a proposta e também recebi convite para trabalhar em outro grande clube brasileiro, mas não posso revelar o nome. 

O que dizer do trabalho do técnico Paulo Pezzolano no Valladolid?

Ele mostra carisma, tem personalidade forte, fala na cara do jogador quando precisa e também sabe o momento de uma conversa privada. Ele é um gestor que vai além dos treinos, agrega diferentes setores do clube, que nem sempre vive momentos favoráveis. Nas horas complicadas, é difícil manter o barco em frente. Teve grande mérito na campanha do acesso na última temporada e tem me ensinado muito. 

Ricardo indica parcela de responsabilidade de Pezzolano no acesso do Valladolid
Ricardo indica parcela de responsabilidade de Pezzolano no acesso do ValladolidValladolid

Ronaldo é uma figura presente no Valladolid?

Bastante, muitas vezes esquecemos que ele foi o melhor jogador do mundo. É uma pessoa simples e serena, que sabe o que quer e consegue reunir grandes profissionais. 

O que dizer da regra que proíbe os goleiros de provocarem os atacantes antes das cobranças de pênaltis?

Em breve, vão amarrar o goleiro na trave e soltá-lo somente depois da cobrança. Na hora do pênalti, é preciso ser malandro e ter intuição e isso só ajuda o batedor. Não concordo e resta nos adaptarmos às regras. 

Faz sentido exigir mais dos reservas do que do goleiro titular?

Quem não joga, precisa saber que não está perdendo seu tempo. Alguns dos reservas que trabalharam comigo se tornaram titulares algum tempo depois, sinal de que eles aproveitaram bem este período. O feedback com eles não tem o jogo incluso, são traçados objetivos individuais para eles evoluírem. A dedicação precisa ser igual. 

Prefere ser preparador ou coordenador como foi no Forest?

Nunca fui só e apenas coordenador. No Forest, fui coordenador mas trabalhava também com os goleiros sub-23 e sub-18. No Legia e Del Valle, fui preparador de goleiros e também coordenador do Departamento de Goleiros.

Sou treinador porque adoro ensinar, adoro criar exercícios que ajudem a resolver os problemas. Coordenar me dá a oportunidade de ensinar o jogo aos goleiros desde muito jovens e de compartilhar as minhas ideias com os outros preparadores. 

Só peço que não me tirem do campo, aí matam o que de melhor tenho, que é calçar as chuteiras e passar adiante minha paixão pelo gol. Sempre fui um animal de treino. 

Ricardo rasgou elogios ao mexicano Uchoa
Ricardo rasgou elogios ao mexicano UchoaFred Moisse

Você trabalhou com o goleiro mexicano Ochoa no Standar Liége, da Bélgica. Ele é um goleiro diferenciado pela "baixa estatura" (1,85m)?

Ochoa é diferenciado porque tem qualidade. Ele percebeu cedo quais eram as suas melhores características e as elevou a um patamar muito alto.

Ele soube aperfeiçoar três qualidades importantes que tem: velocidade de reação, posicionamento e intuição.

Os goleiros de sucesso sabem perfeitamente onde devem se posicionar e reposicionar para resolver os problemas. Ochoa é um goleiro inteligente e que já deu aos amantes desta arte de defender o gol momentos inesquecíveis.

Foi um privilégio ter tido oportunidade de treiná-lo numa fase precoce da minha carreira. 

Goleiros brasileiros estão com "mania" de se jogar no gramado para ganhar tempo após defesas simples e, principalmente, difíceis, especialmente quando seu time está na frente do marcador, alegando lesões que visivelmente não aconteceram. Uma estratégia somente pra ganhar tempo. Vê isso em outros países? Qual sua visão sobre isso?

Sou um apaixonado pelo jogo, pelo futebol bem jogado e pelo espetáculo. Por isso, consigo entender o ponto de vista do torcedor. Mas e o torcedor fanático? Gosta do jogo ou gosta de ver o seu time ganhar? E para ganhar o que está disposto a “fazer”? 

O goleiro ainda tem a possibilidade de gerir o tempo de jogo como nenhum outro. Se todos os jogos, tiverem 25 minutos de acréscimos, você acha que o goleiro vai continuar a se jogar no gramado?

O goleiro é um gestor do tempo, do ritmo e das emoções do time. Ele precisa parar o jogo em momentos de aperto. É óbvio que também não gosto do folclore e do exagero.

Não é goleiro quem quer, mas quem pode e tem a coragem de assumir que vai ser julgado centenas de vezes ao longo da carreira. O goleiro leva por baixo da camisa a capa de um super herói, que tem a coragem de se oferecer a um escrutínio semanal a quem não se admitem erros. Não os julgarei jamais por usarem algumas manhas emocionais para gerarem desconforto no adversário.